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coruche à mão

preservar memória / criar valor

coruche à mão

preservar memória / criar valor

PELES E COUROS - CORREEIROS, SAPATEIROS, PEÇAS DECORATIVAS E ÚTEIS

Para iniciar esta rúbrica publico um bonito texto produzido pelo meu amigo Joaquim Santos, que teve a gentileza de partilhar e colaborar no Coruche à mão. 

 

"Lembranças de outros tempos….

 

A mente humana é um lugar desafiante onde, entre outras coisas, está muita informação guardada.  Alguma dessa informação que vai sendo revelada ao longo da nossa vivencia faz parte do mistério da vida….

Desta forma dei por mim a pensar como e onde terei eu aprendido o significado da palavra Burnil,  a mesma que também é conhecida na gíria como Mulim, Melim ou Moleira. O que é e para que serve?

A primeira vez que ouvi estas palavras foi num mundo que já não existe, que faz parte do meu imaginário. Era um mundo onde eu cabia dentro de uma cesta de verga, que a senhora minha Avó orgulhosamente usava nas idas diárias ao mercado municipal de Coruche. Recordo-me de muita gente em meu redor. Tudo era gigante, as bancas preenchidas de vendedores de produtos hortícolas frescos, peixe, carne, bolos de mel (meus preferidos), era uma azafama total. Percorríamos demoradamente todas as bancas em busca dos produtos mais frescos ou simplesmente para que a senhora minha avó cumprimentasse cada uns dos vendedores(as).

Era uma vivencia cheia de cores e cheiros e nesse percurso havia também lugar a outro dos pontos altos da manhã. A visita às traseiras do mercado, onde por entre o amontoado de carrinhas e carros ainda restavam as ultimas carroças e respetivas mulas, que aguardavam pacientemente que seus donos vendessem os seus produtos para voltarem a casa.

 Foi numa dessas visitas que me foi apresentada a peça fundamental no equilíbrio da relação entre a carroça e a tração animal e o seu condutor e que se destacava pela sua exuberância na decoração. O Burnil, Mulim, Melim ou Moleira.

De que é feito? Pelas mãos sábias de artesãos antigos fazia-se o Mulim de um braçado de palha entrançado com uma determinada configuração e medida. Era revestido a cabedal, cozido à mão e decorado com apliques de lã de cores variadas e garridas. Cada Mulim, representava na sua decoração a zona do país a que pertencia, bem como, o bom gosto do seu proprietário. Era comum serem ricamente decorados com apliques de lã ao longo do “castelo”, reforçado com pequenos guizos, espelhos, apliques de tecido de cores garridas, enfim tudo era válido para dar nas vistas e tornar aquele conjunto ainda mais interessante e vivo.

A função desta peça é simplesmente a de proteger o pescoço  do animal na zona da entrada do garrote de forma a que o animal consiga sem desconforto puxar a carroça. Nesta peça encostava a canga da carroça, que depois de bem apertada pela “tiradeira” e pela “barrigueira” ajustava na perfeição a carroça ao animal que a iria puxar.

O Mulim é composto por um Arco ou Arção, parte interior que envolve o pescoço do animal e pelo Castelo que pode ter vários tamanhos . Naturalmente que quanto maior  o Castelo, mais festivo e ornamental se torna. Contudo, os mulins de trabalho têm normalmente castelos pequenos de forma a não embater em árvores baixas quando utilizados para lavrar, por exemplo; Na parte superior do Mulim e atrás do Castelo existe o vaso onde encaixa a canga da carroça e se fixam os cangalhos; a sua zona inferior é rematada pelas “orelhas” ou “bolas”, onde se aperta os dois gomos do Mulim e se ajusta em redor do pescoço do animal atando com o atilho, onde se encaixa a guizeira.

Passei os anos seguintes a ver no sótão da minha avó um Mulim pendurado. Resistiu anos à poeira e a outros condicionalismo e mais tarde chegou até mim. É uma peça da história e a prova viva de um mundo rural que já não existe. Desta peça dependia o rendimento da tração animal nos trabalhos agrícolas, transporte de géneros e pessoas, que com o evoluir dos tempos foi sendo substituída por outras formas mais modernas e mais adaptadas à realidade atual até às máquinas agrícolas.

Existem relíquias destas  em vários sótãos e arrecadações esperando a sua oportunidade de serem restaurados ou recuperados para orgulhosamente contarem a sua historia, ou simplesmente mostrados e postos a uso. Poucos são já os mestres capazes de os recuperar e cada vez há menos interessados na sua utilização. Mas ainda assim ainda existe quem teime em não deixar estas peças ao abandono, retrato de vivências de um Portugal rural difícil e duro."

 

Joaquim Santos

"Escreve ainda num misto entre novo e antigo acordo ortográfico. Um curioso sobre questões ligadas à etnografia."

 

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Vista geral de um mulim

Créditos fotográficos: Ana Marques

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Pormenor do castelo

Créditos fotográficos: Ana Marques

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Orelhas e atilho de prender

Créditos fotográficos: Ana Marques

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 Adornos no topo do castelo

Créditos fotográficos: Ana Marques

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 A mula Mourisca e o seu mulim

Créditos fotográficos: Ana Marques